Em mais uma recente decisão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) discutiu outra importante questão trabalhista, e, desta vez, a temática abordada foi a Lei nº 13.103/2015, que trata da jornada de trabalho do motorista profissional, cuja deliberação trará impactos no país inteiro. Isso porque, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.322, a Suprema Corte declarou inconstitucionais onze pontos da lei do motorista, sendo a sessão virtual concluída no dia 30/6/2023 [1].
O STF, por maioria de votos, julgou parcialmente procedente o pedido da ADI, declarando inconstitucionais os seguintes pontos:
“(a) por maioria, a expressão ‘sendo facultados o seu fracionamento e a coincidência com os períodos de parada obrigatória na condução do veículo estabelecida pela Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 — Código de Trânsito Brasileiro, garantidos o mínimo de 8 (oito) horas ininterruptas no primeiro período e o gozo do remanescente dentro das 16 (dezesseis) horas seguintes ao fim do primeiro período’, prevista na parte final do § 3º do art. 235-C, vencido o Ministro Nunes Marques, que julgava inconstitucional a totalidade do § 3º; (b) por maioria, a expressão ‘não sendo computadas como jornada de trabalho e nem como horas extraordinárias’, prevista na parte final do § 8º do art. 235-C, vencido o Ministro Nunes Marques, que julgava inconstitucional a totalidade do § 8º; (c) por unanimidade, a expressão ‘e o tempo de espera’, disposta na parte final do § 1º do art. 235-C, por arrastamento; (d) por unanimidade, o § 9º do art. 235-C da CLT, sem efeito repristinatório; (e) por maioria, a expressão ‘as quais não serão consideradas como parte da jornada de trabalho, ficando garantido, porém, o gozo do descanso de 8 (oito) horas ininterruptas aludido no § 3º’ do § 12 do art. 235-C, vencido o Ministro Nunes Marques, que julgava inconstitucional a totalidade do § 12; (f) por maioria, a expressão ‘usufruído no retorno do motorista à base (matriz ou filial) ou ao seu domicílio, salvo se a empresa oferecer condições adequadas para o efetivo gozo do referido repouso’, constante do caput do art. 235-D, vencido o Ministro Nunes Marques, que julgava inconstitucional a totalidade do caput; (g) por unanimidade, o § 1º do art. 235-D; (h) por unanimidade, o § 2º do art. 235-D; (i) por unanimidade, o § 5º do art. 235-D; (j) por unanimidade, o inciso III do art. 235-E, todos da CLT, com a redação dada pelo art. 6º da Lei 13.103/2015; e (k) por maioria, a expressão ‘que podem ser fracionadas, usufruídas no veículo e coincidir com os intervalos mencionados no § 1º, observadas no primeiro período 8 (oito) horas ininterruptas de descanso’, na forma como prevista no § 3º do art. 67-C do CTB, com redação dada pelo art. 7º da Lei 13.103/2015, vencido o Ministro Nunes Marques, que julgava inconstitucional a totalidade do § 3º. Tudo nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes (Relator). Ficaram vencidos, ainda, os Ministros Nunes Marques, Roberto Barroso e Dias Toffoli (declarando a inconstitucionalidade parcial do § 6º do art. 168 da CLT); o Ministro Nunes Marques (declarando a constitucionalidade do art. 235-C, caput, e do § 3º do art. 235-D, atribuindo-lhes interpretação conforme, e a inconstitucionalidade do § 7º do art. 235-D, todos da CLT); o Ministro Ricardo Lewandowski (declarando a inconstitucionalidade de expressão contida no § 3º do art. 4°, e dos §§ 4º e 5º do art. 4º, todos da Lei 11.442/2007); e, vencidos, também, os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber (declarando a inconstitucionalidade do art. 71, § 5º, da CLT, com a redação dada pelo art. 4º da Lei 13.103/2015; dos arts. 235-C, caput e § 13, 235-D, § 3º, § 7º e § 8º, e 235-G, todos da CLT, com a redação dada pelo art. 6º da Lei 13.103/2015; do art. 67-C do CTB, com a redação dada pelo art. 7º da Lei 13.103/2015; do art. 9º da Lei 13.103/2015; e do art. 4º, §§ 3º, 4º e 5º, da Lei 11.442/2007, com a redação dada pelo artigo 15 da Lei 13.103/2015). Não votou o Ministro André Mendonça, sucessor do Ministro Marco Aurélio, que votara em assentada anterior” [2].
Por certo, a especificidade da realidade de jornada de trabalho em que estão inseridos os motoristas profissionais sempre foi objeto de inúmeras discussões e polêmicas, tanto que o assunto foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista Consultor Jurídico (ConJur) [3], razão pela qual agradecemos o contato.
Inicialmente, é importante apontar que, no Brasil, o labor do motorista profissional foi normatizado inicialmente com a Lei nº 12.619/2012 [4], que modificou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para regulamentar a jornada laboral desses trabalhadores. Posteriormente, novas alterações foram introduzidas com o advento da Lei nº 13.103/2015 [5].
Dito isso, com a decisão do Pretório Excelso, doravante não mais será possível o fracionamento das onze horas de descanso previstas entre um dia e outro de trabalho, conforme descrito no artigo 235-C, §3º da CLT, tendo em vista que o descanso entre jornadas estaria atrelado a questões de recuperação física e de segurança rodoviária.
Aliás, nesse desiderato, à luz do artigo 7º, inciso XV, da Constituição [6], o repouso semanal remunerado é um direito social garantido a todos os trabalhadores, de modo que a norma estaria em desacordo com o ordenamento jurídico e as normas constitucionais que tratam acerca do meio ambiente laboral saudável [7].
Contudo, vale lembrar que alguns Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs), ao serem provocados sobre a temática do fracionamento do intervalo entre jornada, validavam a segmentação desse interregno, ao argumento de já existir legislação prevendo tal possibilidade, antes mesmo das inovações trazidas pela Lei nº 13.103/2015 [8].
De outro lado, no que diz ao tempo de espera em que o motorista fica aguardando a carga e a descarga do veículo, a partir da decisão da Suprema Corte tal interregno será reputado como efetivo tempo à disposição do empregador, e, portanto, integrará a jornada de trabalho.
A propósito, impende destacar que tal temática sempre foi uma questão polêmica e controvertida da Lei nº 13.103/2015, vez que a atividade primordial do motorista se dá com a finalidade de condução do veículo, não compreendendo, por certo, as atividades de carga e descarga [9].
Nos termos do artigo 235-C, §8º, da CLT, “são considerados tempo de espera as horas em que o motorista profissional empregado ficar aguardando carga ou descarga do veículo nas dependências do embarcador ou do destinatário e o período gasto com a fiscalização da mercadoria transportada em barreiras fiscais ou alfandegárias, não sendo computados como jornada de trabalho e nem como horas extraordinárias”. Entretanto, essas horas destinadas ao tempo de espera deveriam ser “indenizadas na proporção de 30% (trinta por cento) do salário-hora normal”.
Com base no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, se antes a indenização do tempo de espera era realizada à razão de 30% do salário-hora, a partir dessa decisão o tempo deverá incorporar o expediente laboral e ser remunerado com o adicional legal mínimo de 50%. E, mais, caso seja necessário o motorista acionar e movimentar o veículo durante esse período, tal lapso temporal também passa a ser considerado como de efetivo trabalho.
Do ponto de vista internacional, a Recomendação nº 161 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) [10], que aborda as horas de trabalho e períodos de descanso (transporte rodoviário), dispõe o seguinte:
“períodos de mera presença ou permanência, quer na viatura quer no local de trabalho e durante os quais os trabalhadores não tenham liberdade para dispor do seu tempo como bem entenderem, bem como do tempo por eles dispensado em formação e formação avançada quando acordado estipuladas entre as organizações de empregadores e de trabalhadores interessadas, podem ser consideradas horas de trabalho na medida a ser prescrita em cada país pela autoridade ou órgão competente, por acordos coletivos ou por qualquer outro meio compatível com a prática nacional”.
Noutro giro, a decisão também impossibilitará a cumulação do repouso semanal de vinte e quatro horas nos casos de viagens de longa distância, com duração superior a sete dias, prevista no artigo 235-D, caput, da CLT. Isto porque, em que pese a legislação tenha previsão expressa para a concessão do repouso após o retorno, limitando a três descansos consecutivos, a norma caminha em sentido contrário aos direitos e garantias fundamentais de saúde e medicina previstos na Carta Magna.
Outrossim, a Lei nº 13.103/2015 também possibilitava o descanso em movimento do motorista, na hipótese de o empregador adotar dois motoristas trabalhando no mesmo veículo, o que não será mais admitido, de forma que será imprescindível que o descanso seja realizado com o veículo estacionado. Segundo o voto do relator, “não há como se imaginar o devido descanso do trabalhador em um veículo em movimento, que, muitas das vezes, sequer possui acomodação adequada” [11], afirmando ainda que grande parte das estradas em nosso país se encontram em situações precárias.
Neste novo cenário, o Sindicato das Empresas de Transportes de Carga de São Paulo e Região emitiu uma nota afirmando que tais alterações impactarão negativamente as empresas transportadoras, os consumidores e os próprios motoristas, podendo haver um certo colapso no setor [12]. Uma das justificativas seria de que tal fato poderá dar ensejo ao aumento da inflação, pois os produtos consumidos pela população brasileira, em sua maioria, são transportados por caminhões e essas alterações terão fortes consequências em toda a cadeia produtiva, chegando, indubitavelmente, ao consumidor final.
Se é verdade que as normas que reduzem a proteção de direitos sociais indisponíveis devem ser invalidadas, de igual modo é necessário que, para além da proteção desses trabalhadores, possam ser criadas soluções jurídicas para não majorar o custo do transporte de cargas no país.
Nesse desiderato, oportunos são os ensinamentos de Tereza Aparecida Gemignani e Daniel Gemignani [13]:
“Na esteira do preceituado no artigo 7º, inciso XXVI, da Constituição Federal de 1988, o novo estatuto profissional do motorista veio reconhecer o valor normativo da negociação coletiva, assim fixando parâmetros para o diálogo das fontes, que possibilita várias formas de inter-relação entre as autônomas e heterônomas, criando áreas de confluência para garantir a oxigenação de um ordenamento jurídico saudável e apto a operar com funcionalidade, não só na solução das controvérsias já instaladas, mas também na prevenção de conflitos.
Nesta esteira, importante ressaltar que a negociação coletiva poderá ter sua atuação ampliada para abranger também obrigações de fazer/ não fazer, que possam levar a procedimentos e providências necessárias para evitar/ reduzir a ocorrência de doenças profissionais e acidentes de trabalho.
É uma nova perspectiva que se abre para a atuação mais efetiva e eficaz da negociação coletiva, pautada pelo horizonte do neoconstitucionalismo, que pode levar à superação do nefasto neocorporativismo, que insiste em continuar impregnando o ordenamento e poderá causar sua necrose, levando ao retrocesso das conquistas sociais e trabalhistas obtidas até hoje”.
Frise-se que, até o momento, não houve pronunciamento quanto aos eventuais efeitos modulatórios da decisão do Supremo Tribunal Federal, o que, por certo, traz ainda maior insegurança jurídica em torno do assunto.
Em arremate, é forçoso lembrar que boa parte do que é produzido e consumido no Brasil chega ao seu destino final através das rodovias, fato este que destaca a importância e relevância do transporte rodoviário para a sociedade brasileira [14]. Portanto, a função de motorista profissional, para além de ter um papel importante para a própria economia no país, proporciona geração de empregos e renda, e justamente por isso se faz necessária a proteção desses trabalhadores, assim como a elaboração de mecanismos para a viabilidade da atividade empresarial saudável.
FONTE: https://www.conjur.com.br/2023-jul-20/pratica-trabalhista-lei-motorista-impactos-decisao-supremo-adi-5322