Segundo consta do seu preâmbulo, a Medida Provisória nº 1.171/23 tem por finalidade a “tributação da renda auferida por pessoas físicas residentes no país em aplicações financeiras, entidades controladas e trusts no exterior”, além de alterar os valores da tabela mensal do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física, inclusive limites de dedução.
Como contraponto à perda arrecadatória gerada pelo aumento da faixa de isenção, a medida eleva a carga tributária e determina a incidência do IRPF sobre rendimentos no exterior, ainda que não detidos diretamente pela pessoa física, mediante alíquotas progressivas de 0% (até R$ 6.000 anuais), 15% (até 50 mil anuais) e 22,5% (sobre a parcela que exceder R$ 50 mil anuais).
Uma alteração significativa é que o imposto em questão passa a ser apurado e recolhido anualmente, e não mais pelo carnê-leão. Ou seja, caso convertida em lei, as regras previstas na MP aplicar-se-ão a partir de 1º de janeiro de 2024, e o tributo devido será recolhido quando da apresentação da Declaração de Ajuste Anual no exercício seguinte.
O primeiro ponto que desperta atenção e seguramente vai suscitar polêmica é a tributação de rendas auferidas por entidades controladas por pessoa física residente no país, ainda que situadas em países que não sejam classificados como paraísos fiscais ou constituídas na forma de regimes fiscais privilegiados. A nova legislação institui modelo de Tributação em Bases Universais para as pessoas físicas, de modo que o lucro auferido pelas estruturas offshore passam a ser tributados automaticamente pelo IRPF. Tal regime já é aplicável a pessoas jurídicas há alguns anos e atualmente disciplinado pela Lei nº 12973/14, que instituiu a tributação de lucros de controladas e coligadas no exterior por pessoa jurídica residente no país.
O conceito de entidade controlada empregado na redação do artigo 4º da MP é bastante amplo, na medida em que abrange sociedades e entidades personificadas ou não (como fundos de investimento e fundações), das quais a pessoa física possua direta ou indiretamente o controle. Considera-se como controle indireto a existência de arranjos societários que assegure ao controlador a preponderância nas deliberações societárias ou poder para eleger e destituir a maioria de seus administradores; ou, ainda, possuir direta ou indiretamente, isoladamente ou em conjunto com pessoas vinculadas (familiares, por exemplo), mais de 50% de participação no capital social ou seu equivalente, ou nos direitos aos lucros e ativos em caso de liquidação.
Segundo as justificativas do projeto da MP, a medida veicula uma espécie de regra CFC (Controlled Foreign Company), que implica a tributação automática de lucros auferidos por controladas no exterior por pessoas físicas, a pretexto de evitar o “diferimento” do recolhimento do imposto por seus controladores. Para tanto, veicula dois critérios de atração das normas: 1) o jurisdicional, que vincula a sua aplicação a entidades situadas em paraísos fiscais ou detentoras de regimes fiscais privilegiados; e 2) o critério de renda passiva, que permite a aplicação da regra a estruturas que apurem renda ativa própria inferior a 80 %.
Sobre esse segundo critério, o artigo 4º, §5º da MP, reproduzindo disposição semelhante do 84 da Lei nº 12.973/14, cuidou de definir o conceito de renda passiva de forma negativa e denotativa. É dizer, define renda ativa como “aquela obtida diretamente pela pessoa jurídica mediante a exploração de atividade econômica própria”, para em seguida excluir de tal conotação os seguintes rendimentos: a) royalties; b) juros; c) dividendos; d) participações societárias; e) aluguéis; f) ganhos de capital, exceto na alienação de participações societárias ou ativos de caráter permanente adquiridos há mais de dois anos; g) aplicações financeiras; e h) intermediação financeira.
Para fins de sujeição ao IPRF no Brasil, o §6º desse mesmo dispositivo determina que os lucros das controladas serão apurados em balanço próprio, de forma individualizada, com a observância dos princípios contábeis e da legislação — em que pese nesse ponto deixe e frisar qual a legislação de referência, se a brasileira ou do país em que situada a controlada. Feito isso, os lucros serão computados na Declaração de Ajuste Anual da pessoa física na proporção de sua participação no capital social — ou equivalente — da controlada no exterior.
De outro lado, a MP passa a permitir três hipóteses de dedução na apuração do lucro e do próprio imposto a ser recolhido: 1) prejuízos apurados pela controlada em balanço próprio, referentes a períodos posteriores à MP; 2) parcela dos lucros e dividendos de suas investidas no País; 3) imposto sobre a renda pago no exterior pela controlada e suas investidas, incidente sobre o lucro computado na base do IRPF, até o limite do imposto devido no país.
Ainda sobre as controladas, o artigo 6º da MP determina que a variação cambial do principal aplicado nas controladas passa a compor o ganho de capital percebido pela pessoa física, quando da liquidação, baixa, alienação do investimento ou redução de capital. Ou seja, a mera variação cambial, por si, não está sujeita a tributação, enquanto não liquidado ou realizado o ativo ou investimento.
Algumas premissas da legislação, no entanto, hão de ser questionadas: em primeiro lugar, fica evidente que a MP não pretendeu apenas impor ou aumentar a tributação sobre entidades situadas em paraísos fiscais ou detentora de regimes fiscais privilegiados, como visto acima. Tampouco procurou combater o uso de empresas-casca (shell companies) que são desprovidas de regularidade fiscal e contábil e promovem a distribuição disfarçadas de dividendos por meio, por exemplo, do uso de recursos da controlada para custeio de despesas da pessoa física controladora.
Vale lembrar que a tributação automática dos lucros de controladas (e coligadas) estrangeiras por pessoas jurídicas no Brasil, instituída pelo artigo 74 da MP nº 2.158-35/2001, foi objeto da ADI 2588, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, quando restou inconclusivo o julgamento em alguns pontos importantes, notadamente no caso de controladas situadas em países de tributação regular. É possível que, aprovada a MP, o tema volte a pauta dos tribunais, principalmente em situações em que a tributação automática de lucros de controladas por pessoas físicas, que tradicionalmente recolhem imposto pelo regime de caixa, pode gerar distorções. Basta imaginar a situação de ativos da estrutura offshore, contabilizados a valor justo, que tenham variação positiva gerando um lucro no seu balanço, ainda que não passível de liquidação.
Outra questão relevante diz respeito às controladas situadas em países com os quais o Brasil possui acordo para evitar a bitributação. Nesse ponto, relembre-se que a jurisprudência pátria [1], inclusive do Carf (confira-se a propósito o interessante artigo de Sérgio André Rocha e Thaís de Laurentiis publicado nesta ConJur [2]), reconhece que os tratados que versão sobre matéria tributária prevalecem sobre a legislação interna, por força do artigo 98 do CTN (norma de bloqueio). Nessas situações, a tributação de lucros de empresas não residentes que não tenham sido distribuídos ou disponibilizados feriria o Princípio da Residência (ou Estabelecimento Permanente), geralmente veiculado no artigo 7º dos referidos acordos, nos moldes da convenção modelo da OCDE.
Outro ponto importante foi a regulamentação do trust, o que pela primeira ocorrerá em nível legal em caso de conversão da MP [3]. A definição trazida na MP parece se aproximar daquela versada na Convenção de Haia sobre trusts, do qual o Brasil não é signatário.
Tal instituto, que tem origem no direito anglo-saxão, se caracteriza em função de uma obrigação instituída por alguém (settlor ou instituidor), pela qual outrem (trustee ou administrador do trust) fica investido de um direito de propriedade em caráter de confiança (fidúcia), em benefício de um terceiro (beneficiary ou beneficiário) ou para um propósito específico (purpose) [4]. Em outras palavras, os ativos e bens transferidos ao trustee constituem uma espécie de fundo separado, independente em relação ao seu patrimônio, e que só será transferido ao benefícios depois de implementadas as condições estipuladas pelo instituidor (como o seu falecimento, por exemplo).
De modo geral, a MP estabelece um regime de transparência fiscal para o trust, ao considerar que os bens ou direitos que lhe foram vertidos permanecem sob a titularidade do instituidor após a sua instituição, e somente passará à titularidade do beneficiário no momento da distribuição dos ativos ou do falecimento do instituidor. Interessante notar que o atual tratamento fiscal está em contrariedade com a legislação do RERCT (Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária), instituído pela Lei nº 13.254/16, que enxergava o beneficiário como verdadeiro titular dos ativos [5]. Nota-se, ainda, um descompasso com a recente Resposta à Consulta Tributária 25343/2022, recentemente publicada, que considera o beneficiário o “titular dos direitos sobre o trust” para fins de ITCMD [6].
Da forma como regido atualmente, torna-se difícil conciliar o regime fiscal em questão, sobretudo no caso dos trusts de caráter irrevogável, em que o instituidor deixa de ter qualquer disponibilidade jurídica ou econômica sobre os rendimentos dos bens e direitos dos trusts, com a regra do artigo 43 do CTN. Sobre essa possível distinção dos trusts entre revogáveis e irrevogáveis, o Projeto alega que a ideia teria sido “simplificar as regras do projeto” e “não abrir espaço para diferentes interpretações” ou planejamentos tributários. Em suma, preferiu-se a simplificação dos critérios de transparência à observância ao conceito de renda para efeito de incidência do imposto.
Por fim, a MP permitiu àqueles contribuintes que queiram amenizar eventuais impactos causados pela nova carga tributária a atualização dos seus bens e direitos pelo valor de mercado em 31 de dezembro de 2022, com a condição de que a diferença seja tributada pela alíquota de 10%, desde que recolhida ainda em 2023 (artigo 10º). Para as participações em entidades controladas, tal opção seria estendida, ainda, para o período de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2023, com o pagamento da mesma alíquota de 10% em 2024.
É certo que há um longo caminho até a eventual conversão da medida provisória em lei e a sua regulamentação. Como visto acima, algumas questões controversas merecem e devem ser devidamente debatidas no Parlamento. Do contrário, caso aprovada nos moldes atuais, tais temas, como tem se tornado praxe, provavelmente serão objeto de disputas entre contribuintes e Fisco e terão de ser endereçadas pelo Poder Judiciário. Aguardem-se, pois, os próximos passos.
Texto opinativo da plataforma Consultor Jurídico, escrito por Gabriel Magalhães Borges Prata.
https://www.conjur.com.br/2023-mai-22/gabriel-prata-novas-regras-tributacao-renda-exterior